segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Canções com Sangue

ㅤㅤㅤㅤA coruja testemunhou. Negras nuvens perambulavam pelo céu noturno outrora belo, cada estrela brilhando intensa e magnificamente tal como os olhos atentos de um deus. O vento gritava todas as canções de amor que ele conhecia, completamente desesperado para barrar aquela situação, acreditando de forma ingênua e fiel que um sentimento morto respiraria por ali.

ㅤㅤㅤㅤAs canções, tão complexas com suas notas imaginárias, tão belas com seus tons altos, que acariciam ouvidos aguçados, canções talvez amedrontadoras, penetravam sutilmente por todos os poros da pele de um jovem anjo de cabelos negros, um anjo, porém, tão humano quanto a pessoa sentada ao seu lado aos pés de uma árvore cujos galhos secos lançavam suas unhas para o céu, para os deuses que observavam, com uma altivez aterradora. Não havia lágrimas nos olhos, o coração não bombeava sangue algum – obviamente uma coisa era consequência da outra – e ele só conseguia pensar no passado e no futuro, já que o presente se mostrou irrevogavelmente ingrato.

ㅤㅤㅤㅤO garoto olhou para o outro adormecido ao seu lado, os cabelos negros como os próprios caindo sobre o rosto tão familiar, os traços tão delicados e desenhados com tanta suavidade, fazendo-o lembrar tanto de si mesmo. Duas crianças da noite afundadas melancolicamente na escuridão. Sussurrou o nome dele e viu como aquilo soava como uma prece no ar agitado, e no meio de tanto sangue, ele constatou que era mesmo uma oração que o nome representava; palavra profética que era digna de representar adoração aos deuses.

ㅤㅤㅤㅤPermitiu-se sorrir e esquecer-se do que aquilo significava. Passou os dedos de leve nos fios escuros, um sorriso pairando inocentemente nos lábios pálidos até que a realidade o estapeou inesperadamente e o obrigou a fechar os olhos com força e levar a mão que até então acariciava o corpo inerte, tão belo que lhe doía os ossos e lhe apertava o peito, até o rosto e deixou os dedos escorregarem por sua bochecha lentamente, sujando-a de sangue, o vermelho sujo maculando sua tez branca, num afago que nunca recebera ou receberia de seu semelhante. Escutou a própria respiração e a falta desta no segundo, escutou a vida e a morte infinitamente entrelaçadas e escutou o vento gemer um último apelo. Mas ele só ouvia seu próprio sentimento alertando-o sobre o que acreditava ser a paz definitiva.

ㅤㅤㅤㅤA coruja levantou vôo do galho de onde observara, com imensurável compaixão e calma, os jovens, e pousou com um pequeno ruído na terra seca na frente dos mesmos. Seus olhos fitaram-nos, vidrados, e pôde observar claramente, com um misto de sentimentos quase humanos refletidos em seus olhos, mais daquele líquido viscoso se juntando àquele que já estava seco, alcançando suas penas. Sua penugem marrom se colou junto à pele, fazendo o animal parecer diminuir de tamanho, e sua cabeça se virou bruscamente enquanto abria as grandiosas asas, preparando-se para o céu.

ㅤㅤㅤㅤA figura escura planou entre as poucas estrelas à vista naquele momento e se tornou parte do manto negro que as cobria. Os dois irmãos, infelizes em seu amor descomunal e perdidos na memória do animal, esquecidos para sempre com o rufar de seus corações mortais silenciados, deitados um ao lado do outro com os rostos belos eternizados refletindo para as estrelas, os olhos imortais que se deliciavam com o sangue negro refletido pela lua.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Fuligem e Sofrimento

ㅤㅤㅤㅤDesesperador, só assim se poderia descrever aquele lugar, onde as horas se arrastavam e os – poucos – relógios que se achava mal se mexiam. Era quase como se séculos tivessem se passado em menos de uma hora, a pele se queimando e decompondo-se a cada segundo, inundando as faces de todos aqueles seres com terror e feiúra. O pior castigo que aquelas almas poderiam receber por serem belas em outra vida. Como se ter um semblante tranquilo com traços delicados fosse um pecado.

ㅤㅤㅤㅤPecado. Essa palavra voava nos pensamentos quase extintos de uma garota que se destacava no amontoado de outras almas condenadas. Seu rosto ainda tão terno como antes, a pele mais cinzenta do que o pálido habitual, assim como os cabelos avermelhados, mesmo assim causando o olhar de inveja das criaturas de olhos tão negros quanto às noites daquele Inferno, cujas peles não passavam de fuligem que se desprendiam da carne para então, no dia seguinte – seria mesmo um dia? -, voltarem a surgir junto com os gritos agoniados das criaturas sem nome. A garota morrera há um ou dois dias. Não que naquele lugar terrível ela pudesse saber, porém seu corpo praticamente intacto, em ambos os lugares onde estava, podia lhe dizer medidas de tempo quase exatas. Às vezes, imaginava poder até mesmo olhar pelas pálpebras cerradas eternamente, mesmo que tudo o que pudesse ver fosse uma escuridão sem fim, para onde quer que dirija seus olhos verdes, outrora tão magníficos.

ㅤㅤㅤㅤA adolescente ruiva se sentia perdida em meio a todo aquele sofrimento. Percebera logo naqueles primeiros séculos enganadores que algo metálico estava batendo no lugar do seu coração, os olhos ávidos por alguma cor que não sangue e escuridão. Todos os sentimentos de ódio e repulsa, pesar e nostalgia – principalmente a mortal nostalgia, que cercava toda aquela imensidão escura, como se aquele sentimento presente no mundo inteiro se preservasse ali, enquanto ninguém no mundo dos humanos o sentia – se misturavam nos seus cinco sentidos, e ela sentia que iria desmoronar na própria morte em qualquer segundo.

ㅤㅤㅤㅤEnfim sentiu que era a sua vez. Sentiu o corpo ser percorrido por vermes, e realmente os pode ver, não quando passou as mãos pelo corpo enquanto o novo órgão metálico disparava no seu peito, mas sim debaixo da terra, penetrando na sua pele, a carne apodrecida finalmente deixando de existir aos poucos, o sofrimento se apoderando ainda mais do seu ser. Um grito de pavor saiu da sua garganta seca pela fumaça fedorenta de corpos sendo escaldados em algum lugar dali, e seus olhos se focaram na pele se tornando negra e quebradiça, soluços sem lágrimas saindo descontrolados e abafados. Percebeu em um último instante de lucidez que seu rosto não mais estava belo, e os rostos ao seu redor mostraram um tipo de satisfação selvagem ao que se precipitaram para a mais nova deles, as peles de fuligem se fundindo uma na outra. E um último grito desesperado antes de cair no esquecimento.

domingo, 25 de julho de 2010

Ampulheta Quebrada

ㅤㅤㅤㅤO passado é provavelmente a coisa mais bonita em toda minha vida. A coisa mais grandiosa. Porque, diferente do presente e do futuro, o passado não pode ser mudado. Independente de feliz ou triste o passado é único. É meu. É certo. Imutável e adorável. Não é passado; foi passado.

ㅤㅤㅤㅤRealmente não faz diferença nenhuma o amor ou ódio contido nesse tempo. Começou e terminou. E não existe algo que posso ser tão maravilhoso quanto isso, afinal. Alívio e descanso eterno se mesclam para formar lembranças e reminiscências. Talvez seja sim por demais trágico preferir o próprio passado à dádiva divina do presente, mas o passado é único. O presente é variável. Quando o passado é triste, ele é feliz pois passou. Quando o passado é feliz, ele é feliz por já ter sido uma vez. Quando o passado é vazio, ele é feliz por não ter sido preenchido. Quando o passado é cheio, ele é feliz só por ter sido vivido.

ㅤㅤㅤㅤO meu passado é tão estúpido que chega a ser engraçado. O passado antigo é feito de recordação quase perdida e o recente é feito de sorriso quase inteiro. Ambos lindos. Ambos certos. Ambos gloriosos, bons ou ruins.

ㅤㅤㅤㅤÉ verdade que não volta, que se perdeu, que nunca existiu até, que nunca passou de presente usado. É verdade que viver por ele pode tirar vidas. Mas ainda assim o passado é tudo que outro nunca foi, apenas por já ter sido.