segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Fuligem e Sofrimento

ㅤㅤㅤㅤDesesperador, só assim se poderia descrever aquele lugar, onde as horas se arrastavam e os – poucos – relógios que se achava mal se mexiam. Era quase como se séculos tivessem se passado em menos de uma hora, a pele se queimando e decompondo-se a cada segundo, inundando as faces de todos aqueles seres com terror e feiúra. O pior castigo que aquelas almas poderiam receber por serem belas em outra vida. Como se ter um semblante tranquilo com traços delicados fosse um pecado.

ㅤㅤㅤㅤPecado. Essa palavra voava nos pensamentos quase extintos de uma garota que se destacava no amontoado de outras almas condenadas. Seu rosto ainda tão terno como antes, a pele mais cinzenta do que o pálido habitual, assim como os cabelos avermelhados, mesmo assim causando o olhar de inveja das criaturas de olhos tão negros quanto às noites daquele Inferno, cujas peles não passavam de fuligem que se desprendiam da carne para então, no dia seguinte – seria mesmo um dia? -, voltarem a surgir junto com os gritos agoniados das criaturas sem nome. A garota morrera há um ou dois dias. Não que naquele lugar terrível ela pudesse saber, porém seu corpo praticamente intacto, em ambos os lugares onde estava, podia lhe dizer medidas de tempo quase exatas. Às vezes, imaginava poder até mesmo olhar pelas pálpebras cerradas eternamente, mesmo que tudo o que pudesse ver fosse uma escuridão sem fim, para onde quer que dirija seus olhos verdes, outrora tão magníficos.

ㅤㅤㅤㅤA adolescente ruiva se sentia perdida em meio a todo aquele sofrimento. Percebera logo naqueles primeiros séculos enganadores que algo metálico estava batendo no lugar do seu coração, os olhos ávidos por alguma cor que não sangue e escuridão. Todos os sentimentos de ódio e repulsa, pesar e nostalgia – principalmente a mortal nostalgia, que cercava toda aquela imensidão escura, como se aquele sentimento presente no mundo inteiro se preservasse ali, enquanto ninguém no mundo dos humanos o sentia – se misturavam nos seus cinco sentidos, e ela sentia que iria desmoronar na própria morte em qualquer segundo.

ㅤㅤㅤㅤEnfim sentiu que era a sua vez. Sentiu o corpo ser percorrido por vermes, e realmente os pode ver, não quando passou as mãos pelo corpo enquanto o novo órgão metálico disparava no seu peito, mas sim debaixo da terra, penetrando na sua pele, a carne apodrecida finalmente deixando de existir aos poucos, o sofrimento se apoderando ainda mais do seu ser. Um grito de pavor saiu da sua garganta seca pela fumaça fedorenta de corpos sendo escaldados em algum lugar dali, e seus olhos se focaram na pele se tornando negra e quebradiça, soluços sem lágrimas saindo descontrolados e abafados. Percebeu em um último instante de lucidez que seu rosto não mais estava belo, e os rostos ao seu redor mostraram um tipo de satisfação selvagem ao que se precipitaram para a mais nova deles, as peles de fuligem se fundindo uma na outra. E um último grito desesperado antes de cair no esquecimento.