sexta-feira, 22 de julho de 2011

Sem título

ㅤㅤㅤDirigiu-se com passos rápidos até a pequenina mesa de ébano no canto da sala, entre o sofá e a porta-balcão por onde alaranjados raios de sol escapavam de frestas existentes entre a madeira e o vidro e iluminavam a poeira dançando no ar gélido de inverno, assim como os objetos sobre a superfície plana e negra. As chaves as quais procurava e o couro negro de sua carteira brilhavam com a luz do sol poente. O relógio da cozinha acabara de soar seis horas da tarde.

ㅤㅤㅤResmungou para si mesmo e puxou seus pertences para si, guardando-os nos bolsos e procurando sua cigarreira nos bolsos internos do paletó. Enquanto abria a porta da frente e praticamente corria pelos corredores do apartamento, puxou um bastão cheio de nicotina para entre os lábios e acendeu-o com um fósforo riscado às cegas. Tão logo sua chama se extinguiu e uma breve nuvem de fumaça se alojou em seus pulmões, o fósforo foi jogado para trás, resultando em olhares tortos de outros moradores que passavam pelo local, que foram ignorados por sua expressão mal-humorada e ansiosa.

ㅤㅤㅤAo atingir o final do corredor, uma grade separava-o do espaço vazio onde o elevador deveria estar. Pressionou o botão perolado para chamá-lo. O ponteiro que indicava o andar em que o mesmo se encontrava estava do lado oposto ao que seria útil ao homem. Seus dedos compridos batucaram impacientemente sua perna, e logo suas unhas pequenas eram roídas pelos dentes um tanto amarelados pelos cigarros fumados e café ingerido, uma expressão de desgosto sombreava as belas feições. Apertou os olhos para cima por mais um momento, vendo o ponteiro ainda no mesmo local. Girou sobre os calcanhares e tomou seu lado esquerdo, dando com a soleira de uma porta por onde escadas bem iluminadas desciam.

ㅤㅤㅤOs lances voavam sob seus pés e as luzes sombreavam o caminho já percorrido e faziam longas sombras antes de seus pés chegarem ao próximo degrau. Atrapalhou-se com o cigarro em seus dedos e apagou-o com a ponta do sapato, atingindo o térreo ao mesmo tempo em que um barulho agudo indicou a chegada do elevador. Segurando um súbito impulso de socar uma senhora que lhe cumprimentava de modo animado, tentou ao mesmo tempo em que lhe dirigia um sorriso educado, se infiltrar no meio de adolescentes e homens com trajes parecidos com o seu próprio, parecendo tão atrasados quanto.

ㅤㅤㅤUm grupo de garotas bem-vestidas, talvez para uma festa, que tomava grande parte do saguão, encarou-o intensamente quando pediu licença em um tom amável, surpreendendo a si mesmo. Abriram espaço, os rostos infantis admirados, e observaram o homem se dirigindo ao porteiro com um aceno de cabeça e sumindo através da porta de vidro, que outro homem conservava aberta.

ㅤㅤㅤO pôr-do-sol estava em seu ápice quando chegou à calçada. O astro brilhava mais laranja do que nunca no horizonte. Pouco acima dele, as nuvens haviam se colorido de um ardente rosa e púrpura ao que mais para o sul, o céu ficava gradativamente mais negro, passando de um brilhante azul-esverdeado para um tom mais escuro e enfim se completando com o conhecido manto noturno, onde já se podia avistar uma estrela ou outra. Subitamente trazida em uma corrente de ar, a desesperança e a falta de luz de uma geração eram palpáveis.

ㅤㅤㅤUm senhor estava estirado na calçada, sua pobreza dando maior poder aos prédios da rua. Enrolado em uma manta cinza imunda, ele estremecia a cada rajada de vento. Quando o homem saído do prédio ao lado - após observar o céu por momentos, a despeito do seu atraso, passou rente ao corpo maculado pela velhice, um pequeno gato branco surgiu do emaranhado de panos.

ㅤㅤㅤO animal o mediu com os olhos claros que refletiam a luz. As duas esferas azuis observaram a pose com a qual o homem parava inconscientemente e como sua altura fazia todos os outros se sentirem diminuídos; observaram as sobrancelhas se franzirem quando os olhares, em um choque de verde e anil, se encontraram; liam conhecimento nas íris coloridas e as palavras que os cabelos negros formavam sob o ataque incessante do vento. Certamente, observava uma figura imponente, com elegância e gestos de membro da aristocracia, apesar de não sê-lo; lábios delineados perfeitamente e olhos onde, apesar da cor de oliva, inúmeras cores pareciam se encontrar em torno das pupilas negras como um abismo, se esgueirando, juntamente com ínfimas linhas marrons, como uma vegetação sorrateira e – especialmente naquelas órbitas fascinantes, comum em tantas pessoas, ao mesmo tempo, tão únicas naquele rosto - misteriosas. Com um miado alto, que sobressaltou o velho que dormia, o gato se aproximou com passos imprecisos.

ㅤㅤㅤO homem terminou com o espaço entre ele e o pequeno animal, e o tomou nas mãos, acariciando-o e notando a reverberação leve que saia do pequeno corpo. Uma vez mais, observou os olhos, que aparentavam ter mais sabedoria do que os próprios, e recebeu uma pequena lambida da língua áspera do bichano. Sorriu e enfiou uma mão no bolso do blazer, encontrando algumas moedas as quais colocou próximas à cabeça do homem deitado no chão. Este olhou, com os olhos brilhantes e cheios de um misto de espanto e alegria, o outro homem voltar ao seu caminho com o gatinho espiando por sobre seus braços, como se despedindo do antigo companheiro.

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